Há vida lá fora

Há vida lá fora
19/08/2015

 Uma interpretação das cidades através dos espaços públicos

Quem vive no Sul do país sabe que o mês de julho costuma ser de temperaturas baixas. Algumas manhãs bastante geladas e às vezes acompanhadas da famosa geada que clareia a paisagem. Para quem gosta de apreciar a vista, observar o orvalho das plantas e a neblina sobre os prédios e colinas passa a fazer parte da rotina do inverno. E nos dias mais frios, estar ao ar livre para se aquecer ao sol é quase sempre acalentador. Neste ano, porém, a natureza não quis que fosse bem assim. A chuva intensa e os alagamentos que atingiram a região Oeste de Santa Catarina causaram tristeza e ofuscaram o encanto da estação. E quando finalmente o sol deu o ar de sua graça, o que se pôde ver – além da força e da solidariedade das pessoas – foi uma multidão em busca de espaço. Espaço livre.
O primeiro fim de semana de tempo aberto reuniu muita gente nas ruas, parques e praças. Em Chapecó, bastava circular na principal avenida da cidade para observar o movimento. Famílias, amigos, cachorros, casais e crianças ocuparam os canteiros centrais. Um bom momento para conseguir quantificar a sensação de liberdade e satisfação de estar no que é meu, seu, de todos nós. Então, o público pareceu mais público do que nunca, afinal o coletivo só tem significado por causa das pessoas.
O veterinário Roberto Giovanoni e a médica Sara Berger aproveitaram o domingo ensolarado para praticar slackline, esporte de equilíbrio sobre uma fita de nylon, estreita e flexível. Escolheram o Complexo Esportivo Verdão para treinar, segundo eles, um dos poucos espaços adequados para a atividade em Chapecó. “Pelo tamanho da cidade, faltam opções. De estrutura à manutenção. Quem quer fazer algo diferente, tem que se virar, achar alternativas. É só olhar ao redor. Mais de 200 pessoas no parque em um domingo de sol em pleno inverno”, observa Roberto, enquanto Sara destaca a importância da arborização dos espaços, visto que a cidade possui cada vez mais prédios.
“Estamos numa área verde, no interior do Estado. Não é possível que a cidade tenha que ficar cinza ou cor de tinta. E será mesmo que a nova geração é só computador, celular e todas essas questões levantadas pela pós-modernidade? Ou será que eles não têm incentivos para aproveitar aqui fora?”, complementa Roberto.
No mesmo dia, só que no outro lado da cidade, a bióloga Gládis Blanger Canello e o agricultor Odimar Canello levaram os dois filhos brincar na praça Emílio Zandavali, mais conhecida como pracinha do Marista. Entre uma cuia e outra de chimarrão, chegavam outras pessoas para saborear a pipoca, aproveitar a companhia e desfrutar do ambiente arborizado e acolhedor. “Levamos os filhos andar de bicicleta e chamamos os amigos. Se deixarmos as crianças muito dentro de casa, no computador ou no celular, perdemos muito da convivência entre pais e filhos. Por isso a importância de existir um espaço assim. Eles fazem novas amizades e a gente fortalece os vínculos em família e com a comunidade”, acredita a bióloga.
Em outro ponto da praça, praticamente lotada às 17h de um domingo, a dentista Daiane Balbinot e o analista de logística Leonardo Pompermayer se divertem com Lolita, uma filhote de Yorkshire Terrier. “As pessoas moram cada vez mais em prédios, são poucas as casas que ainda têm terreno sobrando. Então temos que aproveitar ao máximo os espaços públicos. Já chega o trabalho, onde você fica no mesmo lugar o tempo todo. Por isso estamos sempre procurando novos ambientes para o lazer ao ar livre”, conta Daiane.
Tanto ela quanto Gládis mencionam a evolução dos espaços em termos de estrutura e opções, embora acreditem que a conservação possa ser aprimorada. “Melhorou muito perto do que era antigamente, mas as praças deveriam ser mais preservadas, principalmente em relação à limpeza. Nesse sentido, a gente também precisa cuidar”, observa a dentista.
Quem é responsável?
Daiane está certa, apesar de ser comum pensarmos que o público é apenas compromisso do Poder Público. De fato é uma responsabilidade da Prefeitura. Segundo a diretora de Serviços Urbanos de Chapecó, Margarete Farezin, a manutenção das 14 praças públicas e dos seis parques da cidade é feita periodicamente, com limpeza, reparos hidráulicos, elétricos e pintura. Já a reforma dos equipamentos, como as academias ao ar livre – que somam 34 no município – é efetuada conforme a necessidade. Todos os lugares, de acordo com a diretora, possuem um zelador.
Os recursos destinados aos trabalhos de conservação são repassados através de um projeto da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano denominado Requalificação dos Espaços Públicos – Mobilidade Urbana. Para 2015, o orçamento previsto é de R$ 1,421 milhão. Deste valor, R$ 318 mil são recursos próprios, R$ 55 mil de convênios com o Governo Federal e R$ 1,048 milhão de convênios com Governo Estadual.
Mas como somos cidadãos, o espaço também é nosso, portanto somos igualmente responsáveis pela conservação. “Temos ainda muitos problemas de compreensão sobre o que é nosso e o que é coletivo. Parece existir pouco cuidado com o que é comunitário, pois a cultura do não comprometimento é muito forte. Temos sim que zelar por esses espaços, apesar de não sermos educados para isso”, comenta a arquiteta Ana Laura Vianna Villela, mestre em Planejamento Urbano e Regional.
“Temos ainda muitos problemas de compreensão sobre o que é nosso e o que é coletivo. Parece existir pouco cuidado com o que é comunitário, pois a cultura do não comprometimento é muito forte”. Ana Laura Vianna Villela, mestre em Planejamento Urbano e Regional
Professora da Unochapecó e pesquisadora do Grupo Cidades: cultura, urbanização e desenvolvimento, ela faz questão de lembrar que a população é responsável inclusive por cobrar melhorias. “Associações organizadas conseguem reverter situações e tomar para si esses espaços”, acrescenta a pesquisadora.
Um parque para chamar de seu
Foi o que aconteceu com o Parque Alberto Fin, localizado no bairro Paraíso. O que há oito anos era uma área verde abandonada, depósito de objetos furtados e desmanche de carros, se transformou em um enorme espaço estruturado de lazer que atende os moradores de sete loteamentos. Tudo graças à iniciativa da comunidade, que assumiu a responsabilidade do espaço e buscou melhorias junto à Prefeitura e à iniciativa privada. “Nós resolvemos cuidar do lugar. Reunimos representantes de todas as comunidades, procuramos o Poder Público e fomos aos poucos estruturando o local”, explica o presidente e um dos fundadores da Associação Amigos do Parque, Ângelo Carlos Bastiani.
A primeira conquista foi o campo de futebol. Hoje o espaço conta com ginásio, churrasqueiras, cancha de bocha, banheiros, trilhas para caminhadas, parquinho, academia ao ar livre, espaço para orações, uma grande área arborizada e mais de duas mil mudas de árvores. Todo o parque foi pensado a partir dos apontamentos dos moradores.
Além de ter estrutura disponibilizada pela Prefeitura, a Associação promove eventos e investe os recursos na composição do lugar, utilizado inclusive pelas escolas. “Nós temos quer ser parceiros. Só o Poder Público não faz. Sozinhos, nós também não fazemos. E a comunidade reconhece que foi um grande salto para a qualidade de vida”, constata o presidente.
“Nós temos quer ser parceiros. Só o Poder Público não faz. Sozinhos, nós também não fazemos”. Ângelo Carlos Bastiani, presidente da Associação Amigos do Parque Alberto Fin
Dimensões do espaço
Na concepção de Milton Santos, que foi um geógrafo e pesquisador na área da urbanização no Brasil, o espaço público deve ser considerado como uma totalidade. Não pode ser formado apenas pelas coisas, pelos objetos geográficos, naturais e artificiais. A sociedade também deve ser considerada, pois é no espaço que a vida se torna possível, onde se desenvolvem atividades, o convívio e as trocas entre os grupos diversos que compõem a sociedade urbana.
As áreas por consequência estão diretamente relacionadas com a formação de uma cultura que agrega e compartilha entre indivíduos cada vez mais cercados. “Estamos amontoando pessoas e não dando extravasamento para as relações sociais, que se estabelecem basicamente nos espaços públicos”, alerta Ana. A meta sugerida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) é de 12 m² de área verde por habitante na área urbana, mas muitos espaços são locados pelo raio de ação.
“A sociedade também deve ser considerada, pois é no espaço que a vida se torna possível.” Milton Santos, geógrafo e pesquisador
“Levando em conta que as praças têm atendimento local, qual a distância razoável para uma criança percorrer? Três ou quatro quadras. Esse é o raio de uma praça. Depois ela para de atender parte da comunidade, então já teria que ter outra”, exemplifica a arquiteta. Se a cada dez quarteirões desses raios existissem esses espaços, seria algo talvez não ideal, contudo interessante. “Já os parques têm dimensões maiores e funções diferenciadas e é aí que entra uma das grandes críticas ao Ecoparque de Chapecó”, expõe a professora.
Além do Complexo Verdão e do Alberto Fin, Chapecó possui os Parques das Palmeiras, Palmital, Área Verde Vila Páscoa e Ecoparque. O parque urbano é uma área verde com função ecológica, estética e de lazer, no entanto, com uma extensão maior que as praças e jardins públicos. De acordo com o Conselho Nacional do Meio Ambiente, considera-se área verde de domínio público o espaço que desempenhe função ecológica, paisagística e recreativa, propício para a melhoria da qualidade estética, funcional e ambiental da cidade.
“No Ecoparque, você nem pisa no local e já tem uma placa dizendo que não pode quase nada. Ou seja, não tem quase lugar para ir e um dos poucos que tem apresenta diversas proibições. Então, qual a função de um espaço público? Claro que é um lugar bonito, mas é muito restrito”, argumenta Ana.
A estudante de administração Yane Ribeiro mudou recentemente de Curitiba para Chapecó. Notou principalmente o número reduzido de espaços para caminhar, sentar na grama, andar de bicicleta e levar seus animais de estimação passear. O local mais próximo de sua casa é o Ecoparque. “E eu não posso sentar na grama que tem lá”, lamenta a jovem. Ela e mais cinco amigos também saíram para aproveitar o sol no primeiro fim de semana de tempo aberto após uma temporada de chuva em Chapecó. Fizeram um pequeno piquenique no Complexo do Verdão, onde é possível se acomodar pela grama, sem problemas.
Em meio ao grupo, o funcionário público Marcus Ribeiro sugere mais atrações ao ar livre. A secretária de Cultura de Chapecó Roselaine Vinhas afirma, porém, que a instabilidade do tempo tem prejudicado a promoção de eventos abertos na cidade. Segundo ela, a Secretaria apoia e incentiva iniciativas culturais ao ar livre, mas destaca que é preciso existir interesse dos produtores culturais em realizar esse tipo de ação.
Uma experiência bem sucedida, de acordo com a secretária, são as atividades realizadas no Centro de Artes e Esportes Unificados da cidade (CEU). O projeto CEU Aberto para as Artes tem realizado diversos eventos envolvendo arte e cultura, como apresentações, debates, mostras literárias e de cinema, programas de leitura, oficinas de capacitação técnica e artística.
Mobilidade de ideias
Um exemplo nacional que funciona muito bem nesse sentido são asViradas Culturais. Além da ocupação do espaço público através das apresentações, os vendedores ambulantes deixam esse tipo de evento aberto mais diverso, para além da música. Precisam, é claro, de incentivos da iniciativa privada e do Poder Público para acontecer, mas dependem principalmente da presença do público para legitimar os projetos e os investimentos.
Para começar, no entanto, não é necessário muito, desde que haja mobilização. “Na cidade onde eu morava todo o primeiro sábado do mês tinha uma série de apresentações culturais na praça. Acho que em Chapecó falta incentivo, porque capacidade, dinheiro, espaço e talento tem”, instiga Marcus.
Já o administrador Diego Roskoff, que junto aos amigos se despede do tão esperado sol, cobra mais infraestrutura. “O Verdão, por exemplo, um lugar grande, com tantas pessoas, não tem opções para comprar uma água, não tem bancos para acolher quem chega. Isso é qualidade de vida”, aponta o jovem, lembrando que o lazer também faz parte do plano de vida dos chapecoenses.
Em Puerto Madero, famoso bairro de Buenos Aires, o lazer foi levado tão a sério que se tornou atração turística, além de uma forma de ocupação muito bem sucedida. Depois que o porto ficou obsoleto, a região passou por um projeto de reurbanização. Em 1989, o designer Frances Philippe Starck reestruturou parte do lugar, que hoje tem o metro quadrado mais caro da Argentina. À margem do canal existe uma espécie de calçadão que permite caminhadas ao ar livre e, restauradas, as docas se transformaram em residências, bares, restaurantes, cinemas e escritórios. Grandes áreas verdes totalmente voltadas ao lazer completam a estrutura do local.
Isso mostra, portanto, que a mobilidade de ideias e de indivíduos é o que dá vitalidade aos espaços públicos. Pois são esses ambientes, como praças e parques, que refletem a qualidade de vida de uma comunidade, principalmente no momento em que se estuda e se fala tanto em cidades feitas para pessoas.
O que diz o novo Plano Diretor
De acordo com o diretor de Planejamento e Gestão Nemésio Carlos da Silva, a partir do novo Plano Diretor de Chapecó, os loteamentos devem destinar no mínimo 35% de sua área para ruas, áreas institucionais (espaços destinados a praças e parques, equipamentos públicos e uso comum) e áreas verdes. Desse percentual, no mínimo 15% deve ser área institucional e verde. A área verde não pode ser inferior a 6% do total.
 
Fonte: http://revistaflashvip.com.br/ha-vida-la-fora/
Reportagem: Greici Audibert
Fotos: Gabriel Spenassatto
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